quinta-feira, 10 de abril de 2008

Telemaquia

Só há um sentido para a palavra”
James Joyce



PARTE I


SOMBRAS

Vegetissombras
flutuavam silentes na paz matinal
desde o topo da escada ao mar
que ele contemplava.
Da borda para fora
o espelho do mar branquejava;
esporeado por precípites pés lucífogos.

Colo branco do mar pardo.

Ictos gêmeos ,
dois a dois.
Mãos dedilhando harpicordas
fundindo-lhes os acordes geminados.
Undialvas palavras acopladas
tremeluzindo sobre a maré sombria.


GURI
Sou o guri
que sente e ri
com o invisível.


JÚBILO
Jubilo fantasmal, revoluto: almiscarperfumado.
Nem mais a um canto ruminar.



SONHO
Em sonho,
silentemente,
ela lhe viera a ele,
seu corpo gasto dentro de largas vestes funéreas
exalando um odor de cera e de pau-rosa,
seu hálito pendido sobre ele
com mudas palavras secretas,
um esmaecido odor de cinzas molhadas.

Olhos perscrutadores,
fixando-se-me da morte,
para sacudir e dobrar minha alma.
Em mim somente.
O círio dos mortos a iluminar sua agonia.
Lume agonizante sobre a face torturada.
Seu áspero respirar ruidoso estertorando-se de horror,
enquanto todos rezavam aos seus pés.
Seus olhos sobre mim a redobrar-me.
Necrófago !
Mascador de cadáveres!
Não, mãe.
Deixa-me ser e deixa-me viver.



ESQUECIMENTO
Sol quente brincando sobre o mar.
O níquel do vaso de barbear brilhava esquecido,
sobre o parapeito.
Por que deveria eu levá-lo para baixo ?
Ou deixá-lo aí o dia inteiro, amizade esquecida ?


CRIAÇÃO
Criação do nada e milagres
e um Deus personalizado.
Só há um sentido para a palavra.



ADÃO E EVA
Minha décima segunda costela desapareceu
sou o Ubermensch Kinch
o desdentado,
e eu, o super-homem.



FORMA
Nutridos e nutrientes cérebros ao meu redor:
sob lâmpadas incandescentes ,
pingentes com filamentos pulsando desmaiados:
e na escuridão da minha mente
uma preguiça do infra-mundo ,
relutando, avessa à claridade,
remexendo suas sobras escamosas de dragão.
Pensamento é o pensamento de pensamento.
Claridade tranqüila.
A alma é de certo modo tudo o que é:
a alma é a forma das formas.
Tranqüilidade súbita,
vasta, candescente:
forma das formas.


SEGREDOS
Segredos, silentes, pétreos,
moram nos palácios sombrios
dos corações de ambos os dois:
segredos exaustos de sua tirania:
tiranos desejosos de serem destronados.



MAR
O senhor dos mares.
Seus marifrígidos olhos fitavam por sobre a baía vazia:
à história cabe a culpa:
por sobre mim e por sobre minhas palavras,
inabominantes.



TEMPO
O tempo abalado ressalta,
abalo após abalo:
Justas, lamaçal e algara de batalhas,
enregelhado mortivômito dos degolados,
um berro de aguilhões alanceados
fartados nas vísceras sanguinolentas de homens.



VIDA
Muitos erros, muitos malogros,
mas não o pecado.
Agora, ao fim dos meus dias,
continuo lutador.
Mas combaterei pelo direito
até o fim.


ADÃO E EVA
Esposa e companheira de Adão Kadmon:
Heva, Eva nua.
Ela não teve embigo.
Contempla.
Ventre sem jaça,
bojando-se ancho,
broquel de velino reteso, não,
alvicúmulo títrico, oriente e imortal,
elevando-se de pereternidade em pereternidade.
Matriz do pecado.



EUTANÁSIA
Guerreando a vida inteira
quanto à contratransmagnifcandjudeibumbatancialidade.
Heresiarca malzodiacado.
Num lavatório grego
deu o último suspiro:
eutanásia.


CHORO
Senhor.
Sim. senhor.
Não, senhor.
Jesus chorou:
pudera,por Cristo.

CASAS
Casas de decadência,
a minha,
a sua
e todas.


LUZ
Luz dourada sobre o mar,
sobre o areal,
sobre a amurada.
O sol ali está,
as árvores esguias, as casas limão.


OLHOS
Olhos verdes, eu vos vejo.
Colmilho, sinto-o .
Gente lasciva.



AFOGADO
Quero seja sua vida ainda sua,
a minha seja minha.
Um homem afogado.
Seus olhos humanos berram para mim
no horror de sua morte.
Eu...
com eles juntos no fundo...
eu não podia salvá-la.
Águas: morte amarga :
perdida.




APOSTA
Uma mulher e um homem.
Vejo a saiota dela.
Arregaçada, aposto...



MORTE
Canicrânio,
canífaro, os olhos no chão,
move-se para um grande alvo.
Ah, pobre canicorpo.
Aqui jaz o corpo de um pobre canicorpo.




SONO
No sono o signo líquido lhe diz a sua hora,
ordena-lhe o despertar.
Nuptileito, nataleito, leito mortal,
espectriciriado.
Ele chega,
pálido vampiro,
por borrascas os seus olhos,
seu velame morcegueiro ensangüentando o mar,
boca contra o beijo de sua,
dela,
boca.



ORAL
Seus lábios sugavam
e abocanhavam descarnados lábios de vento:
boca contra o ventre dela.
Umba, ominiventrante tumba.
Sua boca amoldava-se exalando alento, inefado: uuiihah : regido de planetas catarácticos, globóides, labaredantes, rugindo juralonjuralonjuralonjura.



SIGNOS
Arrojo esta sombra términa de mim,
hominiforma ineluctável,
chamo-a de volta.
Intérmina,
seria ela minha,
forma de minha forma ?
Quem me percebe aqui ?
Quem em lugar algum jamais lerá estas escritas palavras?
Signos em campo branco.



TRUQUE
Clique faz o truque.
Achas minhas palavras obscuras.
Escuridade está em nossas almas, não achas ?
Mais maviosa.
Nossas almas,
vergonhiferidas por nossos pecados,
apegam-se a nós ainda mais,
uma mulher apegando-se ao seu amante,
e mais e mais.




TOCA-ME
Toca-me.
Olhos doces.
Mão doce doce doce.
Estou sozinha aqui.
Oh toca-me logo, agora.
Qual é essa palavra sabida de todos os homens?
Estou mesmo aqui sozinha.
Triste também.
Toca-me, toca-me.



DEUS
Deus fez-se homem fez-se montanha
fez-se ganso bernaco
fez-se montanha plumosa.
Suspiros mortos
que eu vivente respiro,
pisada poeira morta,
devoro vísceras urinárias de todo morto.



OCEANO
Um maritrânsito este,
olhos castanhos salazulados.
Marimorte,
a mais doce de todas as mortes conhecidas pelo homem .
Velho Pai Oceano.



ONDE ?
Onde? por terras vesperais . A tarde se achará a si mesma.
Sim, a tarde se achará a si mesma em mim, sem mim.
Todos os dias vão ao seu fim.
A propósito, qual é o próximo ?



CENA
Depositou a meleca seca pinçada de uma narina no gume de uma pedra,
com cuidado.
Quanto ao mais, olhe quem quiser.
Atrás.
Talvez haja alguém.

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